terça-feira, 14 de outubro de 2008

AVISO

Queridos,

Disponibilizei na pasta do xerox dois itens para apoio à exposição do seminário da próxima aula, sobre a questão dos regimes da leitura. São os textos seguintes:

Pareyson, Luigi. "A leitura da obra de arte". In: Problemas de Estética;
Wollheim, Richard. "O que faz o espectador". In: A Pintura como Arte.

Como todos já sabem, não teremos nosso encontro habitual, na próxima quarta-feira (também conhecida como amanhã): nos veremos então no dia 22/10, no horário habitual.

Bom fim-de-semana a todos,

Ad,

Benjamim

Experiência e Experiência Estética

Teorias do Signo e da Interpretação - COM 509

Aula no 03 (08/10/2008)
Tema: A Ordem do Fazer: Estética e Poética

3.2. Estética, qualidade estética e experiência e o naturalismo pragmático de Dewey

. "Chris Ware: un art de la mémoir". In: Comix, de Benoît Peeters (Canal Arte, 2004)

1. A questão da experiência estética, que motiva grande parte daqueles que refletem sobre uma estética da comunicação (e que é tomada por estes como um conceito central do campo), nem sempre se explicita, no modo como muitas de suas fontes são reclamadas (em Dufrenne, mas sobretudo em Dewey e Pareyson) na sua relação com as questões que discutimos no item anterior da exposição, devotada ao ordenamento do fazer e ao lugar da reflexão estética, na sua relação com a dimensão poética da artisticidade.

2. De um modo falsamente involuntário, o vídeo com que começamos esta exposição ilustra decerto algumas destas relações, nem sempre muito expressas ou tranquilas entre o que significa evocar a questão do horizonte da percepção que espreita o ato produtivo e que lhe confere esta propriedade, segundo alguns, característica da noção mesma de experiência (isto é, uma qualidade estética). Pois bem, examinemos portanto o modo como acabam por se imbricar, em certos registros do discurso teórico, as noções de experiência, de qualidade estética e em que nível se pode supor que a junção duas se constitua como um tipo específico de experiência, a saber, a experiência estética.

3. Quando observamos o estado atual das reflexões no campo da estética (de que podem nos oferecer sintomas distantes os textos de César Guimarães e Monclar Valverde), vemos que o conceito de experiência que se reclama como central para as teorias estéticas parece nascer de uma necessidade de que se apartem, ao menos numa persepectiva metodológica, os domínios do estético e da artisticidade: é, de fato, notável que nestes mesmos textos, já se parte do pressuposto que a questão da fruição e do julgamento de gosto devam ser tomadas como relativamente independentes do objeto estético, e agora como relativas ao estatuto mesmo da experiência estética.

4. No caso de César Guimarães, ao menos na primeira parte de seu texto, a vindicação de um domínio próprio ao estético diz menos respeito à natureza originária dos objetos da experiencia e sim, de maneira quase integral, a um tipo de experiência reveladora e instituinte, capaz de nos subtrair ao costumeiro e ao familiar; mesmo na perspectiva mais pragmática de Martin Seel, aparentemente tomada como modelar do caminho a se seguir para o conceito de experiência estética, o comentário de Guimarães parece indicar este mesmo percurso que subtrai o estético às características da origem da obra de arte, para localizá-las num tipo de conduta característica, a de uma experiência estética propriamente dita.

. Guimarães, Cesar. "O que ainda podemos esperar da experiência estética?": pp. 14,15.

5. O texto "Estética e Comunicação", de Monclar Valverde, assumidamente polêmico no modo de conduzir as energias de sua argumentação, acaba negligenciando a discussão sobre o conceito mesmo de experiência estética, em nome de uma reflexão sobre os fundamentos da mediatização da experiência, característica de certos fenômenos expressivos da cultura cntemporânea: nestes termos, não é a melhor fonte para avaliar o modo como ele também implica o caráter estético da experiência a um tipo específico de vivência, aquela regida pelo modo como o sentido de unidade de uma ação alcança seu fim, não como cessação, mas como consumação ou êxito.

6. Em seu texto "A dimensão estética da experiência", ao fim de um percurso enciclopédico da história da reflexão filosófica acerca das relações entre estética e artisticidade, Valverde nos restitui ao que parece ser o ponto de dobra da reflexão estética no século XX, e que se define por um novo tipo de atitude perante o caráter estético da experiência e seus reais vínculos com a experiência das obras de arte. Muito especialmente, esta ordem de questões nos restitui ao modo como, num autor como John Dewey, se articulam questões ligadas ao padrão experiencial das obras de arte, e ao modo como a estética contemporânea desontologiza ou desdramatiza a função da obra na constituição de um saber estético, para colocar em seu lugar a idéia da relação ou da conduta, como matrizes desta ordem de experiências.

7. Em "Having an experience", o problema do caráter próprio à obra de arte e à artisticidade, como um todo, se origina no âmbito das interrogações que Deweylança sobre o conceito mesmo de experiência: num sentido algo próximo do modo como Pareyson assimila os processos artísticos à ordem formativa de toda nossa prática, Dewey se pergunta sobre o núcleo definidor da experiência, e o identifica no caráter de unicidade que confere a uma ocorrência seu aspecto de um ato que alcança um certo termo, e cujo fim se defina na ordem de um êxito das relações entre o agente e a matéria que se ofereceu para esta ação mesma. Refletindo em especial sobre a gênese concreta de uma obra de arte em um tipo de experiencia desta espécie, Dewey apenas explora aqui uma questão mais geral de sua reflexão, e que é a da determinação da indissociabilidade entre o caráter consciente do fazer, e sua resultante (ou causa), a natureza (tema de outra de suas reflexões sobre a experiência, Experience and Nature).

8. Assim sendo, a opção que caracteriza sua posição filosófica (a que muitos, de um modo ou de outro, associam com o pragmatismo da filosofia americana deste século, mas que o próprio Dewey designa como sendo um naturalismo) define, antes de mais nada qual é o espaço teórico em que a questão da obra de arte se põe: o elemento artístico (melhor dizendo, estético) que encontramos nas grandes obras as constitui como parte de um acervo da sensibilidade, na exata medida em que exprime um certo acordo das faculdades, que em Dewey enuncia-se como sendo o da integralidade da experiência: na discussão sobre o caráter ativo da experiência, em geral, essa mesma integralidade se define como sendo a unidade da ação, caracterizada pelo sucesso de sua consumação.

. Dewey, "Having an experience". In: Art as Experience: pp. 36,37.

9. A integralidade da experiência, por requisitar, ao mesmo tempo, uma certa idéia de completude de processos (como o do fim de uma ação deliberada) e de unicidade das obras da experiência, não deve nos fazer supor que uma experiência íntegra coincida com cada uma de suas obras: tal é, em muitos casos, segundo o próprio Dewey a admissão central de uma certa tradição filosófica e, contra ela, o naturalismo deve afirmar que a unidade de uma obra da experiência não lhe é intrínseca, muito pelo contrário (o caráter único e terminal de uma experiência é parte da própria experiência). Em outros termos, a unidade da experiência não se confunde com a unidade da obra, muito embora a obra seja um veículo desta mesma unidade (ela exprime valores e aspectos da experiência que apenas a obra, enquanto ponto terminal de um processo de gestação, poderia exibir).

10. E o que leva a obra da experiência a exprimir-se como veículo da integralidade da experiência? Se considerarmos a obra de arte como termo final de um processo (o de sua própria feitura), teremos que reconhecer que ela exprime, como um termo final, a integralidade do processo em que foi feita; mas não num modo no qual apenas ela, obra, importe, pois a expressão desta integralidade passa a incorporar à obra todas estas qualidades do processo em que foi feita; sua perfeição formal, seu senso de proporção e de organicidade, não são qualidades intrínsecas da obra, mas sim da experiência da qual ela parece dar expressão. Quando consideramos a efetividade da arte para a experiência, apenas na perspectiva de sua finalidade enquanto obra, subtraímos dos traços desta exatamente aqueles vínculos com o que desejamos identificar como parte da obra (o sentido de seus modos de se fazer).

11. A unidade da obra se exprime como unidade da experiência na medida em que esta última não coincide apenas com a finalidade dos processos de fazer, mas com uma indissociabilidade entre a produção e o produto: o que Dewey designa como "qualidades estéticas" da obra de arte definem exatamente o vínculo que se exprime, na obra de arte, entre sua finitude e seu fazer-se. Se, na obra de arte, a integralidade da experiência não se exprime no nível de acabamento desta, mas como parte de um processo em que todas as etapas ganham algum tipo de expressão na obra, é necessário que tenhamos em conta o problema de como é que qualidades estéticas se introduzem na experiência: se são as qualidades estéticas que instanciam o fato de que na finitude da obra há um elemento experiencial, então de que ordem são estas mesmas qualidades?
. Dewey, "Having an experience": pp. 38,39.

12. Há um segundo aspecto da obra estética de Dewey que envolve esta questão, e que se define como sendo o da indissociabilidade, na experiência, entre elementos do fazer e do padecer: a filosofia naturalista de Dewey não trata o problema estética como sendo exclusivamente ligado ao artístico, à produção, ao fazer técnico ou poético; ela solicita a compreensão de que há um padecimento prévio a todo fazer, e que define, por sua vez, o real lugar do experienciamento das qualidades estéticas.

13. O problema das relações entre o fazer e o padecer traduz, numa perspectiva diferenciada, o mesmo problema que observamos em Pareyson da indissociabilidade entre a perfeição e o perfazer, entre os modos de fazer e a obra feita: apenas que aqui, o problema se revela tendo por fundo o estatuto da experiência como junção entre aquilo que se exprime por qualidades estéticas (enquanto real proporção, equilíbrio, beleza, finalidade) e a natureza destas mesmas qualidades (que somente se apreciam no nível das paixões, da percepção, do padecer. A experiência, em Dewey, traduz-se, no artístico como a inevitável circularidade entre fazer e apreciar: por isto mesmo, é que a primeira atitude artística é a de uma virtual fruição do que se faz.

14. Experiência e natureza: já observamos que a discussão estética em Dewey implica em que consideremos a teoria da experiência que se encontra em jogo para sua filosofia, pois, a rigor, não se trata (como ainda é o caso de Pareyson) de uma teoria sobre arte, mas de uma discussão sobre a demarcação estética da experiência. Assim sendo, a estética do naturalismo é na verdade uma teoria da experiência, reconhecida sua integralidade como resultante do reconhecimento de que esta envolve a percepção de "propriedades estéticas"; e sobretudo de uma concepção sobre o modo como estas são apreendidas (envolvendo assim, uma mútua irredutibilidade entre a feitura das obras e o padecimento que o poeta sofre de suas qualidades sensíveis).

15. No fundo das questões estéticas de Dewey está, portanto, um problema que não pode ser integralmente resolvido no âmbito da discussão sobre arte (muito embora as obras sejam uma instância privilegiada do problema): é a questão de que as obras da experiência não são coisas, postas a frente de nossa percepção (não são objetos), mas partes de um fenômeno; quando consideramos o problema deweyano da experiência, à luz das questões que ele estabelece sobre as relações entre experiência e natureza, o problema da artisticidade e de sua eficácia se tornam mais evidentes a nós: faço menção apenas à questão, que aparece no Experience and Nature (1925), como sendo da ordem do método das ciências naturais, e que consiste precisamente em reconduzir a generalidade dos juízos científicos ao universo circunscrito do experienciamento das qualidades primárias de coisas.

Referências Bibliográficas:
CAUNE, Jean. "L'expérience esthétique: un concept à construire" e "L'expérience esthétique comme relation". In: L'Esthétique de la Communication;
DEWEY, John. "Having an experience". In: Art as Experience;
GUIMARÃES, César. "O que podemos ainda esperar da experiência estética". In: Comunicação e Experiência Estética;
VALVERDE, Monclar. "Experiência e comunicação". In: Textos de Cultura e Comunicação. 35
VALVERDE, Monclar. "A dimensão estética da experiência". In: Textos de Cultura e Comunicação. 37/38.