domingo, 7 de setembro de 2008

Estética e Cultura de Massa (1)

Teorias do Signo e da Interpretação (COM 509)

Aula no 2 (03/09/2008)
Tema: Estética e Cultura de Massa

2.1. Música ligeira, cinema e regressão estética, em Adorno

1. Os dois textos de Adorno aqui tratados representam um período mais amadurecido da reflexão que nobilitou a perspectiva frankfurtiana da crítica da cultura e dos diagnósticos característicos desta escola sobre a relação entre arte e sociedade, tão caras a seus principais representantes: dentre todos eles, as visões expressas por Adorno sobre a música popular e o cinema nos interessam, justamente por fazer avançar (na linha argumentativa própria a Frankfurt) a dimensão estética das transformações do tecido cultural e dos modos de transmissão e valrização das obras de arte, com o advento de uma cultura fundada em modos de circulação próprios à produção economia em escala industrial.

2. Nesse sentido, são textos que exibem o sinal característico dos prmeiros tipos de orientação mais estetizante da reflexão sobre os meios de comunicação, numa vertente mais próxima da sociologia da cultura e que, não obstante isto, conferem o tom dessa primeira fase de uma possível constituição do olhar estético sobre a comunicação: assim sendo, eles nos interessam, não tanto pelo conteúdo mesmo dos diagnósticos que praticam sobre o estado corrente da experiência estética propiciada através das técnicas de reprodução, mas justamente por dimensionar as relações entre os fenômenos comunicacionais e o universo da cultura que eles podem instituir, no viés da transformação que os mesmos propiciam, no plano da sensibilidade ou dos valores estéticos que os mesmos acarretam.

3. Nestes termos, os dois textos são exemplares do modo como Adorno argumentará, ao fim de sua vida, sobre as relações entre estética e sociedade, a partir de suas considerações sobre o cinema e a música de consumo: numa perspectiva mais genérica e afastada da apreciação dos textos, seu pnto comum é o da reprovação que ambos fazem à assimilação da produção cultural vigente aos critérios pelos quais são avaliados os produtos que trafegam no circuito das mercadorias; assim sendo, a música ligeira e o cinema testemunham um tipo de lógica cultural, não mais apenas característica de um certo modo de produção, mas igualmente assimilada a uma lógica de circulação e transmissão, que redefinem inteiramente a maneira de considerarmos seus respectivos valores espirituais ou culturais. Na música e no filme se exprimem, assim, as forças históricas pelas quais certos domínios da existência social vão se desnaturando, na medida em que se deixam assimilar pelos valores próprios a uma sociedade de consumo.

4. Esta caracterização do espírito crítico das posições adornianas não faz, entretanto, juz, aos verdadeiros problemas que afligem seu pensamento, quando coloca na ordem de suas questões a lógica cultural dos meios de comunicação: no caso de seu argumento sobre os poderes da música, Adorno tenta enxergar em toda uma linhagem de reflexão que remonta às recomendações platônicas sobre os modos musicais (no terceiro livro d’A República), e que tenta assimilar à uma determinada ordem da transmissão cultural (e às funções régias do Estado, nesse contexto) a potencial liberdade propriciada pela fruição de certos tipos de música; Adorno identifica, portanto, nas pontuações platônicas o mesmo propósito de expurgar da manifetsação musical aqueles elementos de tensão que a caracterizaram, na sua dimensão simultânea de fato estético e social: a dialética entre o prazer e a totalidade, a síntese propiciada na música entre o parcial e o essencial, estas se perdem tanto na prescrição platônica contra os modos musicais quanto na sua assimilação pelo modo de produção capitalista.

5. No mesmo espírito (e talvez numa perspectiva surpreendentemente mais formal), a reflexão tardia de Adorno sobre o cinema introduz a questão das relações entre o filme e a literatura, destacando o status propriamente estético da arte cinematográfica: especialmente na relação entre a palavra escrita e sua pronúncia, na adaptação, Adorno reconhece um certo défcit estético no modo como o cinema realiza essa transposição de dois regimes da expressão; a questão se localiza, por assim dizer, no estatuto mesmo da palavra como material fílmico, e daquilo que este material perde de suas propriedades (quando o consideramos no interior da arte literária) a partir do momento em que o filme o atualiza.

6. A questão do comportamento do texto, que motiva toda a teorização sobre a naturalidade do ator de cinema em relação ao teatro (e que justifica o problema da preparação do intérprete, não apenas como marca estilística, mas como dado constitutivo da arte do ator), é aqui enfrentada no nível da relação entre o cinema e a literatura: aquilo que estabelece para o romance a necessidade de uma estilização no uso da palavra (o fato de que o diálogo, quando tratado literariamente, visa à naturalidade da palavra falada, a qual não está imediatamente disponível ao texto escrito) não é uma requisição estrutural na arte cinematográfica: os materiais do filme já trazem, em sua própria natureza de constituição, aquilo que exige da palavra textual uma construção para o bom sucesso de seus efeitos estéticos.

· Adorno, “Notas sobre o filme”: p. 101.

7. Se, no caso do filme, é o problema de sua suposta especificidade estética que mobiliza a interrogação adorniana (num tipo de direção não muito característico da inspiração mais crítica de sua teoria estética), suas diatribes com a música popular é de uma espécie mais caraterística: para Adorno, a música de consumo exprime uma questão central de sua reflexão, e que diz respeito ao fenômeno de regressão estética generalizada, que define o modo como ele diagnostica a assimilação das formas musicais aos valores característicos da modernidade capitalista; no caso da audição na música popular (ou na “música ligeira”), o traço regressivo se define precisamente pelo progressivo afastamento daquilo que está implicado de uma totalidade da expressão musical, no modo em que ela passa a ser sentida, num determinado regime de sua transmissão, característico de seus modos necessariamente mediatizados de circulação.

8. No caso da música de consumo, esta apreciação é essencialmente parcial e dirigida para um gozo que é, em última instância alienante e reforçador das estruturas sociais que sustentam este mesmo modo de produção da qual a música é, muitoas vezes, originada (ou na qual a tradição musical é assimilada, quando incorporada a um novo modo de circulação e transmissão simbólicas). Neste mesmo contexto, o prazer estético oriundo de uma experiência musical possível, em nossos dias, é demarcado na categoria do fetiche, ou seja: um tipo de prazer que se realiza na necessária abstração da totalidade de aspectos na qual o objeto estético se manifesta; por intermédio desse gênero de experiência, aquilo que se encontra reafirmado e reificado são as forças sociais que ditam as regras do gosto e, ao mesmo tempo, são a sede de uma lógica industrial de produção; em linguagem adorniana, as propriedades da experiência estética não se separam daquelas que definem a produção de bens materiais; vivemos, portanto, sob o signo de uma felicidade fabricada.

· Adorno, “O fetichismo na música...”: p. 169.

9. Assim sendo, duas ordens de problemas se impõem a um olhar estético sobre a comunicação, quando a contemplamos nos marcos em que a perspectiva frankfurtiana a apresenta, especialmente em Adorno: de um lado, a noção de um défcit experiencial, constitutivo da lógica pela qual os regimes próprios à transmissão cultural são assimilados à lógica da produção dos bens materiais, no contexto do capitalismo; de outro lado, na reflexão sobre o filme, o modo como a experiência fetichizada da palavra na literatura parece haver impedido a evolução das formas cinematográficas, especialmente quando consideramos sua especial dependência em relação aos gêneros literários.

10. Nos dois casos, exprime-se assim um valor constitutivo do diagnóstico cultural característico da vertente adorniana da escola de Frankfurt (a implicação entre regressão e fetiche), mas que arrasta consigo um interessante dimensionamento dos fenômenos estéticos, em suas características mais próprias, e que podem nos servir para desenvolver as linhas de tensão mais essenciais a uma abordagem estética dos fenômenos comunicacionais, mais a frente. Vejamos como esta questão do núcleo estético dos problemas de uma cultura dos meios de comunicação se desenha, nestas condições.

11. O problema da separação das esferas musicais: quando considera e modificação nas funções que o fascínio exercido pela música ligeira exerce num instante em que seus aspectos regressivos se disseminaram por todo o tecido social, Adorno retoma a questão da separação entre as esferas superiores e inferiores da expressão musical (entre a “música ligeira” e a “música séria”); a suposição de que se separem necessariamente constituiu em boa medida o argumento do próprio fascismo, e não é esta certamente a posição de um Adorno, mas a consideração de que se vinculem naturalmente deve ser igualmente contestada, pois é precisamente em seu âmbito que as forças produtivas encontram sua justificação num plano estético.

12. Para Adorno, a chave para pensarmos de que modo a unidade entre o prazer estético e o consumo se manifestam é a mesma na qual Marx pensara a lógica da produção no capitalismo, ou seja, a da contradição: em boa medida, podemos até imaginar que os esforços por separar as instâncias superiores e inferiores da cultura atendem precisamente a uma requisição daquela visão segundo a qual tais limites não seriam necessários, a saber, o de que nosso entendimento acerca do prazer e da fruição estéticas deve se dar a propósito daquilo que podemos claramente assumir como objeto de nosso acolhimento mais imediato; a cifra que define o modo como reconhecemos as propriedades estéticas da música de nossos dias tem cada vez menos a ver com a unidade tensionada na articulação dos próprios elementos musicais, e cada vez mais com os critérios de publicidade que vigoram em nossa época.

13. O conceito do fetichismo musical: Adorno identifica o processo no qual a experiência estética é um elemento de reificação das forças sociais que propiciam a circulação de bens estéticos com o fetichismo: associando o fenômeno com a descrição de Marx acerca do processo de reificação da forma-mercadoria, Adorno considera que o processo de publicização e circulação de bens culturais passa a ter precedência sobre aquele no qual obras ganham sentido, quando consideramos o modo como um determinado valor histórico se subscreve à arte; o elemento de aparência sensível dos objetos estéticos, de uma obra musical, se deixam perder naqueles que caracterizam sua possibilidade de intercâmbio, num contexto capitalista; em termos, o valor de uso é sobrepujado pelo valor de troca, e de tal modo que, quando consideramos a função do estético em nossos dias, devemos concluir que ela incorporou à sua estrutura uma função de justificação da própria lógica da produção.

Adorno, “O fetichismo...”: pg. 172, 173.

14. A regressão estética da audição: A consequência deste processo no interior do qual as propriedades da música são assimiladas na lógica da reprodução social é, segundo Adorno, a formação de uma escuta regressiva, isto é, uma audição que não consegue articular as obras no plano de uma totalidade conceitual, mas que está permanentemente tomada pelo contingente. A melhor caracterização possível deste fenômeno regressivo encontramos na descrição adorniana da desconcentração típica da relação com o jazz e com a música ligeira, em geral: o efeito da concepção fetichista é aaquela situação na qual um ouvinte torna-se capaz de desenvolver uma sensibilidade auditiva absolutamente atômica e desarticulada.

Referências Bibliográficas:

ADORNO, T.W. “O fetichismo na música e a regressão da audição”. In et. al. Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno;
ADORNO, T.W. “Notas sobre o filme”. In: Adorno – Grandes Cientistas Sociais.

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