quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A transformação mediática dos modos de significação

Teorias do Signo e da Interpretação (COM 509)
Aula no 2 - 10/09/2008
Tema: Estetica e Cultura de Massa (II)

2.2. A transformação mediatica dos modos da significação (tecnica e sensibilidade, em W.Benjamin e M.McLuhan)

1. Há uma passagem do clássico ensaio de Walter Benjamin, de 1936, sobre a obra de arte na época da reprodutibilidade técnica, que é sistematica e sintomaticamente submetida ao esquecimento, no exato instante em que o texto é convocado para enfrentar questões concernentes ao estado das artes e do saber estético na contemporaneidade. A referida passagem alude aos modos pelos quais a experiência é capaz de ser organizada e que, segundo o próprio Benjamin, constituiriam o fundamento das transformações às quais a própria arte estaria historicamente submetida: o advento das novas modalidades técnicas nos daria a visibilidade para uma nova alteração desses fundamentos, sobre os quais a teoria estética em geral e a história da arte em particular, não deveriam estar alheios.

• Benjamin, W. " A obra de arte..." : p. 215.

2. Nesta passagem, vemos enfim a questão da técnica é aludida por Benjamin em seu aspecto constitutivo, sendo que a relação entre o declínio da aura e a ascenção das técnicas de reprodução só deva ser pensada na ordem dos modos de percepção que caracterizam determinadas épocas: a determinação de tais valores - associados, por exemplo, com a permanência da aura - não pertencerá aos domínios de uma teorização estética determinada, mas se vinculará às maneiras pelas quais certos conteúdos culturais são engendrados historicamente. O significado da arte, em seu período clássico ou moderno, apenas se consubstancia em um conjunto de valores, mas tais valores não são a razão de ser da própria obra, em sua presença positiva.

3. O próprio texto de Benjamin parece desmentir, de modo categórico, o estatuto de novidade para o processo que se instaurara, de forma mais visível, com o advento do cinema e da fotografia: para o autor, toda obra de arte sempre foi suscetível de reprodução, e o que vem a caracterizar o período atual como dotado de propriedade, é o fato de que, neste momento, as técnicas de reprodução constituem uma instância primeira da produção da obra. Na ilustração do cinema e da fotografia, somos lançados a um universo da produção do artístico que não mais poderá se referir à reprodutibilidade como algo menos do que o próprio fundamento positivo de sua mais elementar possibilidade. Quando recoloca o problema dos primórdios da fotografia, Benjamin também ressalta que a questão da técnica deveria ser demandada em seu aspecto de fato constitutivo: a rigor, para ele, a história da fotografia é co-extensiva à história das técnicas.

4. Se alguma lição resta sobre aquela passagem do ensaio sobre a reprodutibilidade, esta é a de que os modos de sentir e perceber que se alteram ao curso dos períodos históricos nada mais são do que técnicas, formas de extensão a partir das quais a apreensão da realidade torna-se possível. Se os instrumentos propiciam à sensibilidade os seus modos de se organizar, é também porque tais modos são igualmente extensões, modalidades técnicas: e é, enfim, a uma natureza técnica da sensibilidade que nos vemos lançados, quando indagamos sobre os modos pelos quais o cinema, por exemplo, vem a se instituir como expressão e forma características da contemporaneidade.

5. No pensamento de um autor como Marshall McLuhan encontramos a ênfase em uma descrição e consideração das relações entre a emergência de técnicas (como a do alfabeto, da imprensa e do cinema) e a correlativa transformação dos modos de percepção (ou das estruturas da sensibilidade). A forma pela qual McLuhan aborda o problema da técnica deve nos interessar, particularmente pelas consequências que acarreta para a compreensão dos elementos que constituirão o modelo da expressão cinematográfica. Esta compreensão da técnica em McLuhan (assim como em Benjamin) inscreverá o elemento tecnico-extensional à própria estrutura da expressão e, mais especificamente, à própria estrutura da recepção. Para Mcluhan, a emergência de todas essas técnicas se identifica com os modos pelos quais a organização da sensibilidade é alterada pela presença desses mesmos meios, configurando novas constelações culturais.

6. Nesse sentido, o problema da técnica foi submetido àquele alargamento no interior do qual pudemos, enfim, postular a idéia de que a sensibilidade (e seu conjunto de aparelhos no organismo humano) poderia ser assimilada a uma natutreza técnica (ou ao menos à extensionalidade, característica do reino da tecnicidade). Assim, nos encontraremos numa caracterização do problema estético na obra de McLuhan como sendo co-natural à sua postulação do estatuto constitutivo da técnica no mundo contemporâneo. O problema da cultura poderá ser reclamado por este autor exatamente nos mesmos termos em que Benjamin reclamara a apreensão dos modos de sentir e perceber típicos de certas épocas, a saber: como remissível aos modos técnicos pelos quais a idéia de extensão dos sentidos do corpo é desenvolvida em determinados períodos históricos.

• McLuhan, " Introducao" . In: Galaxia de Guttemberg: p. 17.

7. As consequências dessas transformações, particularmente no que diz respeito às relações entre a comunicação mediática e os modos de estruturação da experiência, constituem o cerne da exploração de Mcluhan, como decorrência desta postulação inicial de que a técnica portaria um caráter fundante para a transformação dessas estruturas. O fato de que a imprensa e os meios eletrônicos constituem-se como técnicas nos dá apenas uma das dimensões em que esta questão possa ser explorada: em McLuhan, o fato decisivo é o de que tais adventos técnicos incidem, como uma matriz, sobre os modos de estruturação sensível da experiência, disposto a uma cultura num período determinado, a um ponto tal que poderíamos postular para o conjunto das disposições estéticas o estatuto de uma natureza técnica ali já portado.

8. Os novos meios elétricos e eletrônicos no mundo moderno - assim como os meios gráficos e impressos, respectivamente nos mundos antigo e medieval - nos demonstram que seu modo de direcionamento para um conjunto de percepções, já estruturado e disposto historicamente na cultura, e alterado decisivamente pela presença dos meios técnicos, é fato do qual não poderemos nos desviar, por qualquer razão de ordem teórica. Ao postular a dimensão fundante do fato técnico na descrição de uma história (e de uma lógica) da cultura, o autor nos oferece a ilustração do percurso do livro, como se este fosse a espécie no interior de uma generalidade: a partir destas relações é que poderemos inferir como é que uma técnica torna-se capaz de tornar fixar toda uma weltanschauung.

• McLuhan, " Visao, som e furia" : p. 145.

9. Mcluhan nos chama a atenção para este fato evidente e decisivo da fundamentação técnica na constituição expressiva do filme, de que sua origem se encontra naquele conjunto de instrumentos - oriundos da técnica fotográfica - e que eram acionados para produzir a impressão do movimento de um objeto, com vistas à observação da natureza do dinamismo corporal. Nas matrizes históricas do cinema, nos veremos dispostos diante daquelas clássicas experiênicias nas quais um cavalo é lançado ao movimento, diante de uma série de câmeras fotográficas em sequência, sendo que a reprodução desses instantâneos, submetidos a uma certa velocidade, produzirá na retina a impressão de realidade típica do ilusionismo fílmico.

10. Mas, ao invés de nos determos neste aspecto de origem técnica como determinante da natureza da expressão cinematográfica, procuremos entender como o objeto deste conjunto de instrumentais pôde chegar a se converter na própria forma pela qual o filme chega a instituir-se na sua recognoscibilidade cultural: de fato, é no cinema que poderemos constatar, de modo mais dramático, que a percepção se realiza no interior do movimento, concebido este como verdadeira faculdadade estética; a importância decisiva do cinema - e que nos traz de volta à questão da técnica - é que somente sob o estatuto da tecnicidade é que uma forma de arte pôde dar à percepção uma imagem quase integralmente especular de sua verdadeira natureza.

• McLuhan, " Cinema: o mundo real..." : p. 319.

11. Do mesmo modo que Benjamin alude à história da fotografia, McLuhan descreve as relações, de todo bem evidentes, entre a técnica e a expressão cinematográfica, como as duas contrafaces de um mesmo processo de constituição. Evidentemente que, no caso do cinema, o aspecto técnico que lhe serve de fundamento dirá respeito às idéias de mudança e de linearidade, próprias a uma civilização alfabética: se o movimento, finalmente, pôde constituir a natureza dos tipos de imagens e signos produzidos pela maquinaria fílmica, sua assimilação a um modo expressivo, reconhecível e legitimado no âmbito dos produtos culturais contemporâneos só poderá se dar a partir de uma fundamentação mais abstrata do estatuto da técnica, o que nos lançará de volta às matrizes do mundo alfabético como a razão de ser mais profunda - e inevitavelmente técnica - da presença do filme.

12. Uma interpretação bastante lícita de um autor como McLuhan nos conduziria a fixar nesse campo da escrita alfabética o suporte técnico aonde o cinema passará a se sustentar como um modo preciso de organização dos sentidos. Para ele, a expressão cinematográfica estaria toda ela assimilada ao legado da escrita em padrão alfabético e seus elementos próprios de espacialidade, continuidade e proporção nesta técnica engendrados. Justamente por isto, ele observa certas situações em que a significação habitual do filme não pode ser apreendida em sua plenitude, pelo fato de que toda uma pedagogia da visualidade - cujas matrizes remontam à disposição linear de elementos visuais e gráficos, típica do alfabeto - não se lhes apresenta como disponível e operável.

• McLuhan, " Cinema: o mundo real do rolo : p. 323.

13. A interessante remissão de McLuhan ao problema de uma origem e natureza técnicas do cinema acarreta, como já afirmara, interessantes consequências no que concerne ao próprio desenvolvimento da forma do filme, no momento em que esta passa a se investir de um estatuto tipicamente narracional, já nas primeiras décadas deste século: o fato de que a origem do cinema se identifica com as pesquisas sobre a natureza do movimento - que se veleram da técnica fotográfica e sequencial para produzirem o efeito objetivo do movimento a ser observado - se prolonga, com o desenvolvimento da técnica, até o ponto em que o próprio movimento, de objeto, converte-se na matéria desta estrutura de expressão. A instituição do efeito estético de dinamismo, investido sobre imagens estáticas, dispostas sucessivamente e em velocidade, é produto dos estudos sobre a natureza do fenômeno, mas consuma-se, ao cabo, na própria matéria inicial a partir da qual o filme se tornará capaz de produzir seus primeiros dados, seus primeiros signos.

Referencias Bibliograficas:

BENJAMIN, Walter. "A obra de arte na epoca de sua reprodutibilidade tecnica". In: Teoria da Cultura de Massa;
MCLUHAN, Marshall. " Cinema: o mundo real do rolo" . In: Os Meios de Comunicacao como Extensoes do Homem;
MCLUHAN, Marshall. " Visao, som e furia" . In: Teoria da Cultura de Massa;
PICADO, Jose Benjamim. " A Natureza Tecnica da Sensibilidade (II): o cinema como arte, extensao e automatismo " . In: Textos de Cultura e Comunicacao. 31/32;
VALVERDE, Monclar. " A Transformacao Mediatica dos Modos de Significacao: notas para uma leitura de McLuhan" . In: Textos de Cultura e Comunicacao. 28.

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