terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Ordem do Fazer: Estética e Poética

Teorias do Signo e da Interpretação (COM 225)
Aula no 3 (17/09/2008)
Tema: A ordem do fazer - Estética & Poética

3.1. Arte Enquanto Produção e Formas do Aparecer (Aristóteles, Valéry e Heidegger)

1. Entre os sentidos mais recorrentes do artístico, encontramos aquele que associa as realizações estéticas como fundamentalmente ligadas à produção da obra de arte: há uma evidente predominância nas primeiras interrogações sobre o artístico, do elemento poético (isto é, produtivo), enquanto associado à interrogação estética; não devemos supor, com isto, que a importância atribuída à técnica artística tenha se dado sem qualquer tipo de contestação (pois, no mundo grego, ao menos, podemos flagrar duas posições, de resto antagônicas sobre a natureza do artístico, a visão pedagógica e politizante da arte de Platão, e a perspectiva propriamente aristotélica, vinculada à classificação dos gêneros produtivos)

2. Se considerarmos, por exemplo, até mesmo a inspiração crítica de muitos dos textos mais clássicos das teorias da comunicação que mais nitidamente inauguram uma espécie de visada estética aos fenômenos de nosso campo de estudos, observaremos esta mesma predominância de uma abordagem que privilegia a perspectiva produtiva dos processos comunicacionais: consideremos, com este fim, a discussão adorniana sobre a técnica moderna, e verifiquemos o quanto nela é informada por uma idéia de arte enquanto produção; quando temos em vista a inspiração aristotélica da discussão sobre arte (e que enfatiza, como sabemos, o problema dos gêneros de produção humana, em geral), vemos que a posição de Adorno, por exemplo, captura esta herança do pensamento estético na exata medida de um antagonismo.

3. Para Adorno, é a perspectiva técnica que, de certo modo, nos interdita a uma percepção daquilo que deve ser pensado como essencial das atividades humanas e do sentido que podemos atribuir aos produtos espirituais (as obras de arte, por exemplo). O primado da técnica e da racionalidade instrumental no domínio da cultura exprime-se, em Adorno, como manifestação do desvio que encontramos operado na modernidade daquilo que seria mais fundamental nas obras de arte, que é seu aspecto de negatividade. Em Adorno, há um reconhecimento, ainda que com o sinal invertido (pois ele nos chama a atenção para os aspectos degenerescentes do predomínio da técnica), da pertinência com a qual o campo de reflexões estéticas trata o problema do efeito artístico como ligado ao sentido prioritariamente produzido nas artes. Veremos mais adiante que esta discussão tem implicações que devem ser avaliadas mais cuidadosamente.

4. Mais recentemente, vemos que o campo de estudos da comunicação vai paulatinamente dissociando a dimensão poética das obras expressivas daquilo que definiria seu caráter de determinação por uma racionalidade instrumetal: em termos, vemos mais recentemente desfazer-se a implicação entre as questões de poética e o horizonte tecnicamente estruturado das manifestações do campo da comunicação. Melhor ainda, vemos que a dimensão processual da comunicação parece auxiliar, ela mesma, esta redefinição pela qual a ordem produtiva inerente a qualquer expressão vem determinada numa estrutura em que os aspectos compreensivos ou pragmáticos de seu êxito não necessitam mais ser explanados pelos princípios de uma razão instrumental ou por uma ação que é conforme a seus fins. Vejamos como toda esta ordem de problemas se define, na história das tradições mais recentes da reflexão estética, e de como ela se organiza a partir de toda uma outra maneira de conceber a faceta da origem poética de toda obra ou expressão.

5. Nesse sentido mesmo, o texto de Monclar Valverde, "Os limites do jogo poético", é exemplar de um diagnóstico determinado pelo qual se separam, na análise dos fenômenos caraterísticos de nossa época, a questão da técnica (e de seu suposto poder de determinar os padrões de organização da experiência contemporânea): no modelo de expressão próprio da arte moderna do início do século XX (mas também em suas manifestações mais frequentes, e que prolongam esse tipo de programa poético, na sequência do modernismo), e também na vertente dos pensadores que se agrupam em torno das questões de uma poética tecnológica e da cibercultura, em geral, o autor identifica esta assimilação indevida dos padrões partilhados da experiência cultural de todas as épocas ao predomínio de uma técnica de terminada em certos períodos históricos.

• Valverde, "Os limites do jogo poético": pp. 131,132.

6. Este mesmo diagnóstico sobre a necessidade de apartar os problemas da poética da questão da técnica mobiliza um sem-número de pensamentos que se agrupam naquilo que certos comentadores designam como a vertente contemporânea das teorias estéticas: no verbete de Abagnano (ao qual o texto de Monclar faz inclusive menção, sem pagar o devido tributo), toda esta ordem de problemas implica numa redefinição mesmo daquilo que se atribui a ordem do fazer, na perspectiva de uma teoria estética. De outro modo, diríamos que a requisição de um discurso sobre a origem produtiva de obras e expressões não se interdita, de um ponto de vista estritamente poético: ao invés disto, as questões ligadas ao domínio da produção artística são dissociadas de qualquer implicação puramente procedimental e é a este título que podem ainda ser restituídas a sua dimensão estética. Examinemos como isto se dá, em seguida.

7. Na aula inaugural em que assumia o ensino da cadeira de Poética, no Collège de France, o filósofo e crítico Paul Valéry já anunciava, ainda em 1937, as grandes linhas nas quais o desenvolvimento de um discurso sobre os fundamentos do artístico começavam a se distanciar do espírito no qual a herança dos saberes poéticos foi assimilada na crítica e na história da literatura: no lugar do caráter prescritivo ao qual a disciplina foi associada, Valéry sugere que nos restituamos ao significado original do verbo do qual se deriva o nome deste saber, e introduza no centro das preocupações da poética o problema da ordenação do fazer que origina as obras do espírito.

8. Considerando que os elementos determinantes do ato pelo qual a criação marca a origem de uma obra não se localizam no próprio ato (não são originárias da vontade de seu autor ou nas circunstâncias de sua biografia), mas fora dele mesmo, Valéry introduz na raiz dos procedimentos da criação um critério de êxito do próprio ato: destacamos esta questão da finalidade do processo artístico, no caso de Valéry, pois esta concepção da finalidade da produção vai demarcar mais tarde as concepções de Pareyson e Dewey sobre a razão do fazer artístico. No caso da primeira lição de Valéry sobre questões de poética, o problema da produção do efeito é menos uma decorrência dos procedimentos da arte do que uma questão ligada ao valor que a obra assume, uma vez consumada em sua feitura. Vejamos como esta questão se desenvolve, no argumento de Valéry.

9. A questão do valor da obra instaura um limite entre dois sentidos do fazer, do qual decorrem,
por sua vez, dois significados distintos da obra na relação com este mesmo fazer: tomada na condição de um procedimento, o fazer que realiza a obra como resultado a toma como objeto dos procedimentos que a consumarão enquanto realidade, ao passo que o fazer que conecta a obra a um valor identifica nela o efeito que é capaz de suscitar, de tal modo que a obra não é, para ele o ponto final, mas a origem daquilo que ele virá a associar com a mesma, enquanto traço de seu valor.

• Valery, "Primeira aula do curso de Poética": p. 183.

10. Como já vimos, há uma evidente antecipação dos temas da estética contemporânea, no modo como Valéry dimensiona a ordem do fazer, própria ao domínio da Poética enquanto disciplina da crítica: mas devemos considerar o acento um tanto sectário que o pensador francês impõe à relativa diferença entre os domínios da criação e da apreciação da obra. Se obserarmos o percurso de autores que se interrogam sobre o processo artístico, numa orientação mais próxima da estética, talvez descortinemos um tipo de abordagem mais integradora das relações entre o fazer e o sentir: as obras de Dewey e Pareyson são, neste quesito, particularmente ilustrativas desta possibilidade de um olhar poético dos problemas estéticos (ou ainda, de uma teoria poética que é capaz de dimensionar os vários níveis do fazer em seu compromisso com a ordem da recepção e da fruição).

11. O debate estético que caracteriza as várias apreensões do sentido do fazer (e que não se confundem com as abordagens estritamente poéticas do assunto) estão em geral concernidas com a necessidade de se atribuir um significado nuclear ao conceito de obra: o fundamento da discussão sobre a produção da arte não se exprime portanto em modos particulares de fazer, mas no sentido comum que parece se exprimir entre a faculdade de produzir e o caráter terminal da obra como veículo destes sentidos produzidos. Assim sendo, a discussão sobre o fazer não interessa à estética do ponto de vista de sua particularidade, mas na perspectiva da compreensão sobre as condições formais de sua apreciação (o que é que, da obra, se deixa ver na apreciação como aspecto de sua feitura?).

12. Há toda uma tradição, que é sobretudo característica de um certo veio filosófico contemporâneo, e que se interroga sobre o sentido da produção e suas relações com o sucesso formal da obra de arte: é no contexto desta tradição (que envolve certos escritos de Heidegger sobre o sentido da obra de arte, assim como a estética naturalista de John Dewey) que podemos reconhecer a demarcação teórica da estética da formatividade de Luigi Pareyson. Na perspectiva teórica da formatividade, o fazer artístico implica em um conjunto de atividades no qual encontraremos uma espécie de simultaneidade entre a necessidade de certas regras e a liberdade que caracteriza certas escolhas estilísticas: sobretudo o que importa para esta teoria é a admissão de que a atividade artística é dirigida por um impulso característico das atividades humanas, que consiste na finalidade do próprio formar.

• Eco, "La estetica de la formatividad y el concepto de interpretacion": pg. 15,16

13. Do ponto de vista da história das teorias estéticas, a importância da teoria da formatividade é da ordem da apreensão de uma significação constitutiva dos processos produtivos da obra: ao contrário do que versa uma certa estética romântica, os aspectos físicos da obra de arte não seriam elementos acidentais, face aos aspectos expressionais da mesma. A obra não é, portanto, apenas uma extrinsecação das determinações subjetivas ou emocionais do criador: quando inscrito ao processo criativo, o artista já está colhido pela necessidade de certos procedimentos cuja razão de ser e sucesso finais pouco deverão a algum estado de consciência ou imagem interior; em outras palavras, a criação artística envolve muito mais a necessidade (essencial na arte) de formar do que a de construir uma imagem singular correspondente a um estado do espírito.

14. Mais importante que o aspecto puramente formal da atividade artística é para Pareyson o fato de que o conceito da formatividade implica na admissão de um trato com a matéria como característica marcante de todo ato produtivo: as exigências do material artístico são mais importantes no processo criativo do que o princípio mesmo da formação. Dizendo melhor, o conceito de formatividade envolve a definição dos processos criativos como intimamente ligados à materialidade da produção. Assim sendo, não podemos falar do impulso de estabelecer formas, de maneira completamente isolada das exigências dos materiais, nos diversos modos de produção artística (é portanto necessário levar-se em conta as diversas matérias que constituem os processos artísticos, de modo a apreender nelas o elemento constitutivo de sua formatividade).

• Eco, op. cit.: pg. 18

15. Ainda como ressalta o mais notável de seus discípulos, a doutrina estética de Pareyson se define como uma aproximação aos aspectos constitutivos da produção artística, na exata medida em que ela exprime um tensionamento inevitável entre a aparente liberdade do ato de construir e as exigências formais impostas pelo conhecimento dos materiais envolvidos na produção. Os ensaios, os esboços, as tentativas, os esquemas de produção exprimem, no processo de criação a inevitável circularidade entre o aparente acaso das tentativas e a necessidade de dar-se um termo ao processo, e que se exprime na efetividade e finalidade da obra acabada. Quer tratemos da dimensão estética da obra no polo dos processos ou do objeto acabado, estaremos restringindo algo que, na perspectiva da formatividade, deve ser visto em sua totalidade (a obra exprime um processo de feitura em que a lei e o acaso, em que a intuição da forma e sua evanascência estão irremediavelmente relacionadas).

16. Quando consideramos, portanto, o processo artístico na perspectiva da estética da formatividade, devemos reconhecer que aquilo que era tido como normativo da arte (imitação, beleza, boa proporção, entre outros) não é senão o resultado ou êxito do processo formativo: em última análise, a estética da formatividade requisita que o processo de formação seja encarado como aspecto constitutivo do artístico, pois é nele que encontraremos a inseparável relação entre a normatividade dos valores artísticos encarnados na obra e a inspiração finalista dos processos formativos.

• Pareyson, "O processo artístico": pg. 184,185

17. Há, segundo as palavras de Pareyson, nos processos de feitura da obra de arte, uma "contemporaneidade de invenção e execução", de tal modo que nos é impossível assumir que a obra esteja integralmente antecipada na mente do artista ou, ao contrário, que seja apenas a resultante do acionamento dos processos de execução e experimentação: se considerarmos o tensionamento originário destes dois polos, teremos muito mais sugestões sobre as reais implicações da produção artística do que quando supomos que ela envolva uma pura antecipação de conceituações ou pura experimentação. Estas características não constituem apenas a feitura da obra de arte, mas são exigências teleológicas das atividades humanas em geral, na exata medida em que elas são internamente comprometidas com o êxito e com sua própria finitude.

• Pareyson, op. cit: p. 187.

18. Quando consideramos a real natureza dos processos formativos na arte, devemos nos cuidar em considerar até que ponto estamos tomando os processos da feitura ou a obra acabada como ponto de vista de nossas considerações sobre o estatuto do processo: Pareyson nos lembra que, do ponto de vista estrito do processo de criação, o caráter terminal da obra é menos importante do que a natureza de determinação (em geral interna a processos de descoberta) das escolhas feitas durante a composição; mas tão logo avancemos neste mesmo processo, verificando que as sucessivas escolhas e antecipando algum grau organização de uma visão final da obra, percebemos que a liberdade deste movimento inicial de tentativas e induções vai progressivamente cedendo lugar àquilo que caracteriza uma visão mais conceitual da obra como determinada em uma instância de ideações antecipatórias (isto é, do ponto de vista da obra acabada, podemos entender a perspectiva de uma concepção da arte como repercussão do mental).

• Pareyson, op. cit: pg. 192.

Referências Bibliograficas:
ECO, Umberto. "La estetica de la formatividad y el concepto de interpretcion". In: La Definicion del Arte.
GOMES, Wilson. " Estrategias da Produção do Encanto: o alcance contemporâneo da poética de Aristóteles". In: Textos de Cultura e Comunicação. 35;
PAREYSON, Luigi. " O processo artistico" . In: Problemas de Estética;
PICADO, Jose Benjamim. "A Natureza Técnica da Sensibilidade (I): os arcanos da intrumentalidade" . In: Textos de Cultura e Comunicação. 30;
VALERY, Paul. " Primeira aula do curso de poética". In: Variedades.
VALVERDE, Monclar. "O limites do jogo poético". In: Temas em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade.

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